Simplesmente Corajosa






Reprodução na íntegra de um email que recebi hoje:

Acredito que ela exagerou no termo usado... Poderia ter dito vai se danar,vai catar coquinho, pentear macacos etc, etc...


SIMPLESMENTE CORAJOSA

Adriana Vandoni Curvo

é professora de economia, consultora, especialista em Administração Pública pela FGV/RJ.


Blog dela
http://argumento.bigblogger.com.br/ .


PRESIDENTE, VÁ SE FODER!

por Adriana Vandoni Curvo

Não sei se é desespero ou ignorância. Pode ser pelo convívio com as más companhias, mas eu, com todo o respeito que a "Instituição" Presidente da República merece, digo ao senhor Luis Inácio que vá se foder. Quem é ele para dizer, pela segunda vez, que tem mais moral e ética "que qualquer um aqui neste país"? Tomou algumas doses a mais do que o habitual, presidente?

Esta semana eu conheci Seu Genésio, funcionário de um órgão público que tem infinitamente mais moral que o senhor, Luis Inácio.

Assim como o senhor, Seu Genésio é de origem humilde, só estudou o primeiro grau e sua esposa foi babá. Uma biografia muito parecida com a sua, com uma diferença, a integridade. Ao terminar um trabalho que lhe encomendei, perguntei a ele quanto eu o devia. Ele olhou nos meus olhos e disse:

- Olha doutora, esse é o meu trabalho. Eu ganho para fazer isso. Se eu cobrar alguma coisa da senhora eu vou estar subornando. Vou sentir como se estivesse recebendo o mensalão.

Está vendo senhor presidente, isso é integridade, moral, ética, princípios coesos. Não admito que o senhor desmereça o povo humilde e trabalhador com seu discurso ébrio.

Seu Genésio, com a mesma dificuldade da maioria do povo brasileiro, criou seus filhos. E aposto que ele acharia estranho se um dos quatro passassem a ostentar um patrimônio exorbitante, porque apesar tê-los feito estudar, ele tem consciência das dificuldades de se vencer. No entanto, Lula, seu filho recebeu mais de US$ 2.000.000,00 (dois milhões de dólares) de uma empresa de telefonia, a Telemar. E isso, apenas por ser seu filho, presidente! Apenas por isso e o senhor achou normal. Não é corrupção passiva? Isso é corrupção Luis Inácio! Não é ético nem moral! É imoral!

E o senhor acha isso normal? Presidente, sempre procurei criar os meus filhos dentro dos mesmos princípios éticos e morais com que fui criada. Sempre procurei passar para eles o sentido de cidadania e de respeito aos outros. Não posso admitir que o senhor, que deveria ser o exemplo de tudo isso por ser o representante máximo do Brasil, venha deturpar a educação que dou a eles. Como posso olhar nos olhos dos meus filhos e garantir que o trabalho compensa, que a vida íntegra é o caminho certo, cobrar o respeito às instituições, quando o Presidente da República está se embriagando da corrupção do seu governo e acha isso normal, ético e moral?

Desafio o senhor a provar que tem mais moral e ética que eu!

Quem sabe "vossa excelência" tenha perdido a noção do que seja ética e moralidade ao conviver com indivíduos inescrupulosos, como o gangster José Dirceu (seu ex-capitão), e outros companheiros de partido, não menos gangsteres, como Delúbio, Sílvio Pereira, Genoíno, entre outros.

Lula, eu acredito que o senhor não saiba nem o que seja honestidade, uma prova disso foi o episódio da carteira achada no aeroporto de Brasília. Alguém se lembra? Era início de 2004, Waldomiro Diniz estava em todas as manchetes de jornal quando Francisco Basílio Cavalcante, um faxineiro do aeroporto de Brasília, encontrou uma carteira contendo US$ 10 mil e devolveu ao dono, um turista suíço. Basílio foi recebido por esse senhor aí, que se tornou presidente da república. Na ocasião, Lula disse em rede nacional, que se alguém achasse uma carteira com dinheiro e ficasse com ela, não seria ato de desonestidade, afinal de contas, o dinheiro não tinha dono. Essa é a máxima de Lula: achado não é roubado.

O turista suíço quis recompensar o Seu Basílio lhe pagando uma dívida de energia elétrica de míseros 28 reais, mas as regras da Infraero, onde ele trabalha, não permitem que funcionários recebam presentes. E olha que a recompensa não chegava nem perto do valor da Land Rover que seu amigo ganhou de um outro "amigo".

Basílio e Genésio são a cara do povo brasileiro. A cara que Lula tentou forjar que era possuidor, mas não é. Na verdade Lula tinha essa máscara, mas ela caiu. Não podemos suportar ver essa farsa de homem tripudiar em cima na pureza do nosso povo. Lula não é a cara do brasileiro honesto, trabalhador e sofrido que representa a maioria. Um homem que para levar vantagem aceita se aliar a qualquer um e é benevolente com os que cometem crimes para benefício dele ou de seu grupo e ainda acha tudo normal! Tenha paciência! "Fernandinho Beira-Mar", guardando as devidas proporções, também acha seus crimes normais.

Desculpe-me, 'presidente', mas suas lágrimas apenas maculam a honestidade e integridade do povo brasileiro, um povo sofrido que vem sendo enganado, espoliado, achacado e roubado há anos. E é por esse povo que eu me permito dizer: Presidente, vá se foder!

Adriana Vandoni Curvo

URL:: http://argumento.bigblogger.com.br/

Cuiabá / MT




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5 Comentários

  1. O título e parte do texto foram adulterados. O correto é "se danar", tendo inclusive sido publicado em jornal impresso em 2005. Caiu na internet, e é impossível impedir que isso ocorra. Você poderá encontrar um explicação no www.prosaepolitica.com, o blog da Adriana

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  2. A cruzada dos criminosos contra o crime

    Cara Adriana:

    Não vá se foder — no sentido mau do termo. Vá refletir. Seu ponto de vista defende gente como senador paranaense Álvaro Dias (PSDB), que esteve envolvido no roubo de R$ 100 milhões comandado pelo ex-prefeito de Maringá (PR), o tucano Jairo Gianoto, e o ex-secretário da Fazenda daquela cidade, Luiz Antônio Paolicchi. Segundo Paolicchi, o dinheiro da prefeitura foi usado para pagar campanhas dos então candidatos a governador, Jaime Lerner (PFL), e a senador, Álvaro Dias. Defende também figuras como o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), protetor de gente como o banqueiro Daniel Dantas e Eliane Tranchesi, a dona da Daslu. Esses senadores representam aquela histórica fatia da sociedade para quem a corrupção é um meio de vida. A Daslu, em pleno auge das críticas à sua opulência, foi defendida também — entre outros do mesmo extrato social — pelo ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Loyola.

    Para ele, o fato de um investimento de cerca de R$ 150 milhões de reais gerar mil empregos diretos, como a Daslu, justificava tudo. "As críticas feitas ao consumo de luxo não têm nenhuma lógica econômica", disse Loyola. "O que não ajuda a reduzir a pobreza é não haver consumo, seja de luxo ou de qualquer outra coisa", afirmou. Eliana Tranchesi, a dona da Daslu, pegou a onda. "Não tenho culpa nenhuma pela desigualdade social", disse ela. "Já faço muito pelo país investindo e gerando empregos", pregou. Suas palavras soam como provocação. É verdade que séculos antes de a Daslu ser inaugurada o Brasil já era campeão mundial da desigualdade de renda. A sonegação fiscal e outros produtos da indústria da maracutaia instaurada pela elite brasileira também não nasceram com a Daslu.

    Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser vivo que encare numa boa a mordida do fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma. Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%.

    Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de "indústria de liminares". No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.

    Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.

    Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994. Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).

    Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. "O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional", disse Lopes Filho.

    O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado. Não se iluda: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.

    No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança”. São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.

    Mas essa “classe média” se imagina a escolhida para levar as massas ao paraíso. Em meio à crise política instalada no país, ela usa o pronome “nós” como se nele fosse possível reunir todos os habitantes do país. O “nós” na verdade é a elite, um ''sujeito histórico'' que só é obscuro para quem quer que ele seja. São mais do que óbvios os motivos pelos quais a elite brasileira considera esse assunto um tapete que ninguém pode levantar. Debaixo dele só há corrupção, desmandos e roubalheiras.

    O Brasil é um país em que 15 desbravadores chegaram há mais de 500 anos com uma capitania hereditária à sua disposição. São eles os tataravôs da elite. Desde então, ela impõe a visão de que a riqueza como fruto de algo escuso é natural. Não é por outro motivo que os ricos brasileiros são vistos como usurpadores, ou gente de mau caráter. Porque — e isso está no imaginário brasileiro — são pessoas que não precisaram trabalhar para chegar lá, que têm ligações escusas com o poder, que não precisam cumprir as leis e jogar pelas regras como todos os outros. Se acham, como na idade das trevas, enviados pela divindade.

    Eles querem fazer os brasileiros acreditar que está tudo normal nas suas relações com o chamado povão. Não está. Na verdade, a situação entre uns e outro talvez esteja em seu pior momento — e, pelo rumo que a coisa vem tomando, parece destinada a piorar ainda mais. São evidentes os laços que unem esse movimento da elite com a plataforma política da direita numa espécie de conspiração para eleger seus candidatos nas eleições de 2008 e 2010. Pior: numa visão mais sombria, e não menos realista, essa gente está tendo uma conduta de caráter golpista — por não aceitarem os resultados das eleições de 2006, ou mesmo de 2002.

    É por isso, e por nenhuma outra razão, que a “classe média” mostra um panorama tão negativo do Brasil governado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal cenário é a construção do braço forte da direita, a “grande imprensa”, que aproveita eventuais equívocos ou desvios isolados de um ou outro agente do governo — às vezes inadmissíveis — para criar a impressão de que existe corrupção sistêmica, desordem e incompetência incuráveis na administração do presidente Lula.

    Em lugar da crítica construtiva, o que se vê é um panorama de ruínas, baseado em mentiras, falsificações e proselitismos. E quando há contestações a essa toada cínica, a reação é raivosa — uma conduta que comprova a alergia dessa gente à plena liberdade de expressão. Eles toleram a democracia, quando ela é exercida pelos setores populares da sociedade, por não terem força para suprimi-la.

    O lado positivo disso é a oportunidade do debate sobre o papel político da “classe média” e da elite no Brasil. São conceitos mais ligados ao pensamento social do que à posição que o sujeito ocupa na pirâmide econômica do país. Em geral, uma coisa se liga à outra — mas há muitas exceções. Para os ideólogos elitistas, qualquer um que defenda suas idéias recebe uma espécie de certidão negativa em relação à suspeita de conduta governista.

    Venha do degrau que vier na escala social, o cidadão que entra na esfera da ideologia da elite deixa imediatamente de ser integrante do “sistema de apoio” do governo — e, portanto, do mal. Assim como a Igreja oferece com o batismo o pronto remédio para o pecado original, na política, no caso do Brasil de hoje, para quem nasceu fora da “classe média” ou da elite a salvação vem por meio da pronta aceitação das idéias conservadoras. E para os que não querem, ou não conseguem, juntar-se ao movimento e assim ficarem livres do pecado original? Há uma saída bem simples: basta falar mal do governo.

    Fica difícil entender, é verdade, como a “classe média” consegue, ao mesmo tempo, denunciar a malvadeza dos “corruptos e incompetentes” e integrar um grupo infestado de corruptos e incompetentes. Mas e daí? Não é mesmo para entender. O problema é outro. O discurso conservador não é aberto porque ele causaria arrepios. As palavras não estariam muito distantes da pregação ultradireitista na Europa, que defende o que lá se chama de ''limpeza social'': o extermínio dos pobres, principalmente se eles forem imigrantes.

    No Brasil, não é raro ouvir dessa gente que bandido bom é bandido morto. É uma pregação que não guarda grande distância das idéias fascistas. A diferença é que na Europa o discurso é aberto e ainda causa indignação. No Brasil, ele é velado e rende votos. Sabemos que a elite brasileira não adota, desde sempre, a democracia como mola mestra da sociedade. E também não assume ou honra compromissos entre os participantes do jogo democrático. Pobre é pobre, rico é rico — cada qual em seu universo. A zona Sul carioca ignora a zona Norte. Paulistanos dos Jardins não se sentem conterrâneos dos habitantes das periferias da cidade.

    Esse fator faz com que as relações de classes sejam permeadas por uma dose considerável de violência. A elite brasileira acredita só ter direitos; e os excluídos revidam de modo cada vez mais duro. A violência é um fenômeno que vara a sociedade de alto a baixo e atinge todas as esferas da vida econômica e política do país. Daí o fato de o Brasil ter um longo histórico de instabilidade política.

    Ao longo do último século, apenas um presidente recebeu o poder de outro teoricamente diretamente eleito e o entregou a outro presidente regularmente eleito: Artur Bernardes, em 1922. O conceito de democracia como governo do povo ganhou significado de resistência à corrupção e às deformações sociais do liberalismo. As virtudes da igualdade apenas no plano jurídico e da economia guiada pela “mão invisível” do mercado, limites do “país justo” defendido pelos liberais, no Brasil sempre foram palavras ocas.

    Hoje, pode-se dizer que este conceito deve ser ampliado para a luta por condições materiais, concretas, que possam assegurar a todos uma vida decente — com efetivas possibilidades de elevar a nação ao patamar da verdadeira liberdade. A evolução deste fascinante debate teórico, no entanto, implica em romper o estreito formalismo liberal e incorporá-lo ao combate político que se trava hoje no país.

    A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.

    Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático (o bisavô do DEM e do PSDB). Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.

    Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento bairrista da elite paulistana, que se mantêm ainda hoje, como se este ''ser paulista'' que ele proclamou fosse algo superior aos demais brasileiros. Principalmente aqueles que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram. De passagem, dá para lembrar alguns precursores deste partido, como Frei Caneca — que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento —, de Tiradentes — enforcado por defender a independência do Brasil — e de Cipriano Barata — que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.

    A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos — cuja nascente é o regime das capitanias hereditárias. A lei universal dos conservadores brasileiros, traduzida pelo pronome “nós”, ainda trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. Pense nisso.

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  3. A cruzada dos criminosos contra o crime

    Cara Adriana:

    Não vá se foder — no sentido mau do termo. Vá refletir. Seu ponto de vista defende gente como senador paranaense Álvaro Dias (PSDB), que esteve envolvido no roubo de R$ 100 milhões comandado pelo ex-prefeito de Maringá (PR), o tucano Jairo Gianoto, e o ex-secretário da Fazenda daquela cidade, Luiz Antônio Paolicchi. Segundo Paolicchi, o dinheiro da prefeitura foi usado para pagar campanhas dos então candidatos a governador, Jaime Lerner (PFL), e a senador, Álvaro Dias. Defende também figuras como o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), protetor de gente como o banqueiro Daniel Dantas e Eliane Tranchesi, a dona da Daslu. Esses senadores representam aquela histórica fatia da sociedade para quem a corrupção é um meio de vida. A Daslu, em pleno auge das críticas à sua opulência, foi defendida também — entre outros do mesmo extrato social — pelo ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Loyola.

    Para ele, o fato de um investimento de cerca de R$ 150 milhões de reais gerar mil empregos diretos, como a Daslu, justificava tudo. "As críticas feitas ao consumo de luxo não têm nenhuma lógica econômica", disse Loyola. "O que não ajuda a reduzir a pobreza é não haver consumo, seja de luxo ou de qualquer outra coisa", afirmou. Eliana Tranchesi, a dona da Daslu, pegou a onda. "Não tenho culpa nenhuma pela desigualdade social", disse ela. "Já faço muito pelo país investindo e gerando empregos", pregou. Suas palavras soam como provocação. É verdade que séculos antes de a Daslu ser inaugurada o Brasil já era campeão mundial da desigualdade de renda. A sonegação fiscal e outros produtos da indústria da maracutaia instaurada pela elite brasileira também não nasceram com a Daslu.

    Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser vivo que encare numa boa a mordida do fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma. Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%.

    Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de "indústria de liminares". No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.

    Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.

    Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994. Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).

    Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. "O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional", disse Lopes Filho.

    O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado. Não se iluda: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.

    No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança”. São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.

    Mas essa “classe média” se imagina a escolhida para levar as massas ao paraíso. Em meio à crise política instalada no país, ela usa o pronome “nós” como se nele fosse possível reunir todos os habitantes do país. O “nós” na verdade é a elite, um ''sujeito histórico'' que só é obscuro para quem quer que ele seja. São mais do que óbvios os motivos pelos quais a elite brasileira considera esse assunto um tapete que ninguém pode levantar. Debaixo dele só há corrupção, desmandos e roubalheiras.

    O Brasil é um país em que 15 desbravadores chegaram há mais de 500 anos com uma capitania hereditária à sua disposição. São eles os tataravôs da elite. Desde então, ela impõe a visão de que a riqueza como fruto de algo escuso é natural. Não é por outro motivo que os ricos brasileiros são vistos como usurpadores, ou gente de mau caráter. Porque — e isso está no imaginário brasileiro — são pessoas que não precisaram trabalhar para chegar lá, que têm ligações escusas com o poder, que não precisam cumprir as leis e jogar pelas regras como todos os outros. Se acham, como na idade das trevas, enviados pela divindade.

    Eles querem fazer os brasileiros acreditar que está tudo normal nas suas relações com o chamado povão. Não está. Na verdade, a situação entre uns e outro talvez esteja em seu pior momento — e, pelo rumo que a coisa vem tomando, parece destinada a piorar ainda mais. São evidentes os laços que unem esse movimento da elite com a plataforma política da direita numa espécie de conspiração para eleger seus candidatos nas eleições de 2008 e 2010. Pior: numa visão mais sombria, e não menos realista, essa gente está tendo uma conduta de caráter golpista — por não aceitarem os resultados das eleições de 2006, ou mesmo de 2002.

    É por isso, e por nenhuma outra razão, que a “classe média” mostra um panorama tão negativo do Brasil governado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal cenário é a construção do braço forte da direita, a “grande imprensa”, que aproveita eventuais equívocos ou desvios isolados de um ou outro agente do governo — às vezes inadmissíveis — para criar a impressão de que existe corrupção sistêmica, desordem e incompetência incuráveis na administração do presidente Lula.

    Em lugar da crítica construtiva, o que se vê é um panorama de ruínas, baseado em mentiras, falsificações e proselitismos. E quando há contestações a essa toada cínica, a reação é raivosa — uma conduta que comprova a alergia dessa gente à plena liberdade de expressão. Eles toleram a democracia, quando ela é exercida pelos setores populares da sociedade, por não terem força para suprimi-la.

    O lado positivo disso é a oportunidade do debate sobre o papel político da “classe média” e da elite no Brasil. São conceitos mais ligados ao pensamento social do que à posição que o sujeito ocupa na pirâmide econômica do país. Em geral, uma coisa se liga à outra — mas há muitas exceções. Para os ideólogos elitistas, qualquer um que defenda suas idéias recebe uma espécie de certidão negativa em relação à suspeita de conduta governista.

    Venha do degrau que vier na escala social, o cidadão que entra na esfera da ideologia da elite deixa imediatamente de ser integrante do “sistema de apoio” do governo — e, portanto, do mal. Assim como a Igreja oferece com o batismo o pronto remédio para o pecado original, na política, no caso do Brasil de hoje, para quem nasceu fora da “classe média” ou da elite a salvação vem por meio da pronta aceitação das idéias conservadoras. E para os que não querem, ou não conseguem, juntar-se ao movimento e assim ficarem livres do pecado original? Há uma saída bem simples: basta falar mal do governo.

    Fica difícil entender, é verdade, como a “classe média” consegue, ao mesmo tempo, denunciar a malvadeza dos “corruptos e incompetentes” e integrar um grupo infestado de corruptos e incompetentes. Mas e daí? Não é mesmo para entender. O problema é outro. O discurso conservador não é aberto porque ele causaria arrepios. As palavras não estariam muito distantes da pregação ultradireitista na Europa, que defende o que lá se chama de ''limpeza social'': o extermínio dos pobres, principalmente se eles forem imigrantes.

    No Brasil, não é raro ouvir dessa gente que bandido bom é bandido morto. É uma pregação que não guarda grande distância das idéias fascistas. A diferença é que na Europa o discurso é aberto e ainda causa indignação. No Brasil, ele é velado e rende votos. Sabemos que a elite brasileira não adota, desde sempre, a democracia como mola mestra da sociedade. E também não assume ou honra compromissos entre os participantes do jogo democrático. Pobre é pobre, rico é rico — cada qual em seu universo. A zona Sul carioca ignora a zona Norte. Paulistanos dos Jardins não se sentem conterrâneos dos habitantes das periferias da cidade.

    Esse fator faz com que as relações de classes sejam permeadas por uma dose considerável de violência. A elite brasileira acredita só ter direitos; e os excluídos revidam de modo cada vez mais duro. A violência é um fenômeno que vara a sociedade de alto a baixo e atinge todas as esferas da vida econômica e política do país. Daí o fato de o Brasil ter um longo histórico de instabilidade política.

    Ao longo do último século, apenas um presidente recebeu o poder de outro teoricamente diretamente eleito e o entregou a outro presidente regularmente eleito: Artur Bernardes, em 1922. O conceito de democracia como governo do povo ganhou significado de resistência à corrupção e às deformações sociais do liberalismo. As virtudes da igualdade apenas no plano jurídico e da economia guiada pela “mão invisível” do mercado, limites do “país justo” defendido pelos liberais, no Brasil sempre foram palavras ocas.

    Hoje, pode-se dizer que este conceito deve ser ampliado para a luta por condições materiais, concretas, que possam assegurar a todos uma vida decente — com efetivas possibilidades de elevar a nação ao patamar da verdadeira liberdade. A evolução deste fascinante debate teórico, no entanto, implica em romper o estreito formalismo liberal e incorporá-lo ao combate político que se trava hoje no país.

    A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.

    Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático (o bisavô do DEM e do PSDB). Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.

    Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento bairrista da elite paulistana, que se mantêm ainda hoje, como se este ''ser paulista'' que ele proclamou fosse algo superior aos demais brasileiros. Principalmente aqueles que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram. De passagem, dá para lembrar alguns precursores deste partido, como Frei Caneca — que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento —, de Tiradentes — enforcado por defender a independência do Brasil — e de Cipriano Barata — que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.

    A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos — cuja nascente é o regime das capitanias hereditárias. A lei universal dos conservadores brasileiros, traduzida pelo pronome “nós”, ainda trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. Pense nisso.

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  4. A cruzada dos criminosos contra o crime

    Cara Adriana:

    Não vá se foder — no sentido mau do termo. Vá refletir. Seu ponto de vista defende gente como senador paranaense Álvaro Dias (PSDB), que esteve envolvido no roubo de R$ 100 milhões comandado pelo ex-prefeito de Maringá (PR), o tucano Jairo Gianoto, e o ex-secretário da Fazenda daquela cidade, Luiz Antônio Paolicchi. Segundo Paolicchi, o dinheiro da prefeitura foi usado para pagar campanhas dos então candidatos a governador, Jaime Lerner (PFL), e a senador, Álvaro Dias. Defende também figuras como o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), protetor de gente como o banqueiro Daniel Dantas e Eliane Tranchesi, a dona da Daslu. Esses senadores representam aquela histórica fatia da sociedade para quem a corrupção é um meio de vida. A Daslu, em pleno auge das críticas à sua opulência, foi defendida também — entre outros do mesmo extrato social — pelo ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Loyola.

    Para ele, o fato de um investimento de cerca de R$ 150 milhões de reais gerar mil empregos diretos, como a Daslu, justificava tudo. "As críticas feitas ao consumo de luxo não têm nenhuma lógica econômica", disse Loyola. "O que não ajuda a reduzir a pobreza é não haver consumo, seja de luxo ou de qualquer outra coisa", afirmou. Eliana Tranchesi, a dona da Daslu, pegou a onda. "Não tenho culpa nenhuma pela desigualdade social", disse ela. "Já faço muito pelo país investindo e gerando empregos", pregou. Suas palavras soam como provocação. É verdade que séculos antes de a Daslu ser inaugurada o Brasil já era campeão mundial da desigualdade de renda. A sonegação fiscal e outros produtos da indústria da maracutaia instaurada pela elite brasileira também não nasceram com a Daslu.

    Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser vivo que encare numa boa a mordida do fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma. Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%.

    Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de "indústria de liminares". No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.

    Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.

    Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994. Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).

    Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. "O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional", disse Lopes Filho.

    O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado. Não se iluda: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.

    No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança”. São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.

    Mas essa “classe média” se imagina a escolhida para levar as massas ao paraíso. Em meio à crise política instalada no país, ela usa o pronome “nós” como se nele fosse possível reunir todos os habitantes do país. O “nós” na verdade é a elite, um ''sujeito histórico'' que só é obscuro para quem quer que ele seja. São mais do que óbvios os motivos pelos quais a elite brasileira considera esse assunto um tapete que ninguém pode levantar. Debaixo dele só há corrupção, desmandos e roubalheiras.

    O Brasil é um país em que 15 desbravadores chegaram há mais de 500 anos com uma capitania hereditária à sua disposição. São eles os tataravôs da elite. Desde então, ela impõe a visão de que a riqueza como fruto de algo escuso é natural. Não é por outro motivo que os ricos brasileiros são vistos como usurpadores, ou gente de mau caráter. Porque — e isso está no imaginário brasileiro — são pessoas que não precisaram trabalhar para chegar lá, que têm ligações escusas com o poder, que não precisam cumprir as leis e jogar pelas regras como todos os outros. Se acham, como na idade das trevas, enviados pela divindade.

    Eles querem fazer os brasileiros acreditar que está tudo normal nas suas relações com o chamado povão. Não está. Na verdade, a situação entre uns e outro talvez esteja em seu pior momento — e, pelo rumo que a coisa vem tomando, parece destinada a piorar ainda mais. São evidentes os laços que unem esse movimento da elite com a plataforma política da direita numa espécie de conspiração para eleger seus candidatos nas eleições de 2008 e 2010. Pior: numa visão mais sombria, e não menos realista, essa gente está tendo uma conduta de caráter golpista — por não aceitarem os resultados das eleições de 2006, ou mesmo de 2002.

    É por isso, e por nenhuma outra razão, que a “classe média” mostra um panorama tão negativo do Brasil governado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal cenário é a construção do braço forte da direita, a “grande imprensa”, que aproveita eventuais equívocos ou desvios isolados de um ou outro agente do governo — às vezes inadmissíveis — para criar a impressão de que existe corrupção sistêmica, desordem e incompetência incuráveis na administração do presidente Lula.

    Em lugar da crítica construtiva, o que se vê é um panorama de ruínas, baseado em mentiras, falsificações e proselitismos. E quando há contestações a essa toada cínica, a reação é raivosa — uma conduta que comprova a alergia dessa gente à plena liberdade de expressão. Eles toleram a democracia, quando ela é exercida pelos setores populares da sociedade, por não terem força para suprimi-la.

    O lado positivo disso é a oportunidade do debate sobre o papel político da “classe média” e da elite no Brasil. São conceitos mais ligados ao pensamento social do que à posição que o sujeito ocupa na pirâmide econômica do país. Em geral, uma coisa se liga à outra — mas há muitas exceções. Para os ideólogos elitistas, qualquer um que defenda suas idéias recebe uma espécie de certidão negativa em relação à suspeita de conduta governista.

    Venha do degrau que vier na escala social, o cidadão que entra na esfera da ideologia da elite deixa imediatamente de ser integrante do “sistema de apoio” do governo — e, portanto, do mal. Assim como a Igreja oferece com o batismo o pronto remédio para o pecado original, na política, no caso do Brasil de hoje, para quem nasceu fora da “classe média” ou da elite a salvação vem por meio da pronta aceitação das idéias conservadoras. E para os que não querem, ou não conseguem, juntar-se ao movimento e assim ficarem livres do pecado original? Há uma saída bem simples: basta falar mal do governo.

    Fica difícil entender, é verdade, como a “classe média” consegue, ao mesmo tempo, denunciar a malvadeza dos “corruptos e incompetentes” e integrar um grupo infestado de corruptos e incompetentes. Mas e daí? Não é mesmo para entender. O problema é outro. O discurso conservador não é aberto porque ele causaria arrepios. As palavras não estariam muito distantes da pregação ultradireitista na Europa, que defende o que lá se chama de ''limpeza social'': o extermínio dos pobres, principalmente se eles forem imigrantes.

    No Brasil, não é raro ouvir dessa gente que bandido bom é bandido morto. É uma pregação que não guarda grande distância das idéias fascistas. A diferença é que na Europa o discurso é aberto e ainda causa indignação. No Brasil, ele é velado e rende votos. Sabemos que a elite brasileira não adota, desde sempre, a democracia como mola mestra da sociedade. E também não assume ou honra compromissos entre os participantes do jogo democrático. Pobre é pobre, rico é rico — cada qual em seu universo. A zona Sul carioca ignora a zona Norte. Paulistanos dos Jardins não se sentem conterrâneos dos habitantes das periferias da cidade.

    Esse fator faz com que as relações de classes sejam permeadas por uma dose considerável de violência. A elite brasileira acredita só ter direitos; e os excluídos revidam de modo cada vez mais duro. A violência é um fenômeno que vara a sociedade de alto a baixo e atinge todas as esferas da vida econômica e política do país. Daí o fato de o Brasil ter um longo histórico de instabilidade política.

    Ao longo do último século, apenas um presidente recebeu o poder de outro teoricamente diretamente eleito e o entregou a outro presidente regularmente eleito: Artur Bernardes, em 1922. O conceito de democracia como governo do povo ganhou significado de resistência à corrupção e às deformações sociais do liberalismo. As virtudes da igualdade apenas no plano jurídico e da economia guiada pela “mão invisível” do mercado, limites do “país justo” defendido pelos liberais, no Brasil sempre foram palavras ocas.

    Hoje, pode-se dizer que este conceito deve ser ampliado para a luta por condições materiais, concretas, que possam assegurar a todos uma vida decente — com efetivas possibilidades de elevar a nação ao patamar da verdadeira liberdade. A evolução deste fascinante debate teórico, no entanto, implica em romper o estreito formalismo liberal e incorporá-lo ao combate político que se trava hoje no país.

    A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.

    Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático (o bisavô do DEM e do PSDB). Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.

    Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento bairrista da elite paulistana, que se mantêm ainda hoje, como se este ''ser paulista'' que ele proclamou fosse algo superior aos demais brasileiros. Principalmente aqueles que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram. De passagem, dá para lembrar alguns precursores deste partido, como Frei Caneca — que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento —, de Tiradentes — enforcado por defender a independência do Brasil — e de Cipriano Barata — que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.

    A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos — cuja nascente é o regime das capitanias hereditárias. A lei universal dos conservadores brasileiros, traduzida pelo pronome “nós”, ainda trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. Pense nisso.

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  5. A cruzada dos criminosos contra o crime

    Cara Adriana:

    Não vá se foder — no sentido mau do termo. Vá refletir. Seu ponto de vista defende gente como senador paranaense Álvaro Dias (PSDB), que esteve envolvido no roubo de R$ 100 milhões comandado pelo ex-prefeito de Maringá (PR), o tucano Jairo Gianoto, e o ex-secretário da Fazenda daquela cidade, Luiz Antônio Paolicchi. Segundo Paolicchi, o dinheiro da prefeitura foi usado para pagar campanhas dos então candidatos a governador, Jaime Lerner (PFL), e a senador, Álvaro Dias. Defende também figuras como o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), protetor de gente como o banqueiro Daniel Dantas e Eliane Tranchesi, a dona da Daslu. Esses senadores representam aquela histórica fatia da sociedade para quem a corrupção é um meio de vida. A Daslu, em pleno auge das críticas à sua opulência, foi defendida também — entre outros do mesmo extrato social — pelo ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Loyola.

    Para ele, o fato de um investimento de cerca de R$ 150 milhões de reais gerar mil empregos diretos, como a Daslu, justificava tudo. "As críticas feitas ao consumo de luxo não têm nenhuma lógica econômica", disse Loyola. "O que não ajuda a reduzir a pobreza é não haver consumo, seja de luxo ou de qualquer outra coisa", afirmou. Eliana Tranchesi, a dona da Daslu, pegou a onda. "Não tenho culpa nenhuma pela desigualdade social", disse ela. "Já faço muito pelo país investindo e gerando empregos", pregou. Suas palavras soam como provocação. É verdade que séculos antes de a Daslu ser inaugurada o Brasil já era campeão mundial da desigualdade de renda. A sonegação fiscal e outros produtos da indústria da maracutaia instaurada pela elite brasileira também não nasceram com a Daslu.

    Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser vivo que encare numa boa a mordida do fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma. Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%.

    Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de "indústria de liminares". No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.

    Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.

    Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994. Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).

    Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. "O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional", disse Lopes Filho.

    O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado. Não se iluda: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.

    No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança”. São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.

    Mas essa “classe média” se imagina a escolhida para levar as massas ao paraíso. Em meio à crise política instalada no país, ela usa o pronome “nós” como se nele fosse possível reunir todos os habitantes do país. O “nós” na verdade é a elite, um ''sujeito histórico'' que só é obscuro para quem quer que ele seja. São mais do que óbvios os motivos pelos quais a elite brasileira considera esse assunto um tapete que ninguém pode levantar. Debaixo dele só há corrupção, desmandos e roubalheiras.

    O Brasil é um país em que 15 desbravadores chegaram há mais de 500 anos com uma capitania hereditária à sua disposição. São eles os tataravôs da elite. Desde então, ela impõe a visão de que a riqueza como fruto de algo escuso é natural. Não é por outro motivo que os ricos brasileiros são vistos como usurpadores, ou gente de mau caráter. Porque — e isso está no imaginário brasileiro — são pessoas que não precisaram trabalhar para chegar lá, que têm ligações escusas com o poder, que não precisam cumprir as leis e jogar pelas regras como todos os outros. Se acham, como na idade das trevas, enviados pela divindade.

    Eles querem fazer os brasileiros acreditar que está tudo normal nas suas relações com o chamado povão. Não está. Na verdade, a situação entre uns e outro talvez esteja em seu pior momento — e, pelo rumo que a coisa vem tomando, parece destinada a piorar ainda mais. São evidentes os laços que unem esse movimento da elite com a plataforma política da direita numa espécie de conspiração para eleger seus candidatos nas eleições de 2008 e 2010. Pior: numa visão mais sombria, e não menos realista, essa gente está tendo uma conduta de caráter golpista — por não aceitarem os resultados das eleições de 2006, ou mesmo de 2002.

    É por isso, e por nenhuma outra razão, que a “classe média” mostra um panorama tão negativo do Brasil governado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal cenário é a construção do braço forte da direita, a “grande imprensa”, que aproveita eventuais equívocos ou desvios isolados de um ou outro agente do governo — às vezes inadmissíveis — para criar a impressão de que existe corrupção sistêmica, desordem e incompetência incuráveis na administração do presidente Lula.

    Em lugar da crítica construtiva, o que se vê é um panorama de ruínas, baseado em mentiras, falsificações e proselitismos. E quando há contestações a essa toada cínica, a reação é raivosa — uma conduta que comprova a alergia dessa gente à plena liberdade de expressão. Eles toleram a democracia, quando ela é exercida pelos setores populares da sociedade, por não terem força para suprimi-la.

    O lado positivo disso é a oportunidade do debate sobre o papel político da “classe média” e da elite no Brasil. São conceitos mais ligados ao pensamento social do que à posição que o sujeito ocupa na pirâmide econômica do país. Em geral, uma coisa se liga à outra — mas há muitas exceções. Para os ideólogos elitistas, qualquer um que defenda suas idéias recebe uma espécie de certidão negativa em relação à suspeita de conduta governista.

    Venha do degrau que vier na escala social, o cidadão que entra na esfera da ideologia da elite deixa imediatamente de ser integrante do “sistema de apoio” do governo — e, portanto, do mal. Assim como a Igreja oferece com o batismo o pronto remédio para o pecado original, na política, no caso do Brasil de hoje, para quem nasceu fora da “classe média” ou da elite a salvação vem por meio da pronta aceitação das idéias conservadoras. E para os que não querem, ou não conseguem, juntar-se ao movimento e assim ficarem livres do pecado original? Há uma saída bem simples: basta falar mal do governo.

    Fica difícil entender, é verdade, como a “classe média” consegue, ao mesmo tempo, denunciar a malvadeza dos “corruptos e incompetentes” e integrar um grupo infestado de corruptos e incompetentes. Mas e daí? Não é mesmo para entender. O problema é outro. O discurso conservador não é aberto porque ele causaria arrepios. As palavras não estariam muito distantes da pregação ultradireitista na Europa, que defende o que lá se chama de ''limpeza social'': o extermínio dos pobres, principalmente se eles forem imigrantes.

    No Brasil, não é raro ouvir dessa gente que bandido bom é bandido morto. É uma pregação que não guarda grande distância das idéias fascistas. A diferença é que na Europa o discurso é aberto e ainda causa indignação. No Brasil, ele é velado e rende votos. Sabemos que a elite brasileira não adota, desde sempre, a democracia como mola mestra da sociedade. E também não assume ou honra compromissos entre os participantes do jogo democrático. Pobre é pobre, rico é rico — cada qual em seu universo. A zona Sul carioca ignora a zona Norte. Paulistanos dos Jardins não se sentem conterrâneos dos habitantes das periferias da cidade.

    Esse fator faz com que as relações de classes sejam permeadas por uma dose considerável de violência. A elite brasileira acredita só ter direitos; e os excluídos revidam de modo cada vez mais duro. A violência é um fenômeno que vara a sociedade de alto a baixo e atinge todas as esferas da vida econômica e política do país. Daí o fato de o Brasil ter um longo histórico de instabilidade política.

    Ao longo do último século, apenas um presidente recebeu o poder de outro teoricamente diretamente eleito e o entregou a outro presidente regularmente eleito: Artur Bernardes, em 1922. O conceito de democracia como governo do povo ganhou significado de resistência à corrupção e às deformações sociais do liberalismo. As virtudes da igualdade apenas no plano jurídico e da economia guiada pela “mão invisível” do mercado, limites do “país justo” defendido pelos liberais, no Brasil sempre foram palavras ocas.

    Hoje, pode-se dizer que este conceito deve ser ampliado para a luta por condições materiais, concretas, que possam assegurar a todos uma vida decente — com efetivas possibilidades de elevar a nação ao patamar da verdadeira liberdade. A evolução deste fascinante debate teórico, no entanto, implica em romper o estreito formalismo liberal e incorporá-lo ao combate político que se trava hoje no país.

    A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.

    Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático (o bisavô do DEM e do PSDB). Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.

    Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento bairrista da elite paulistana, que se mantêm ainda hoje, como se este ''ser paulista'' que ele proclamou fosse algo superior aos demais brasileiros. Principalmente aqueles que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram. De passagem, dá para lembrar alguns precursores deste partido, como Frei Caneca — que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento —, de Tiradentes — enforcado por defender a independência do Brasil — e de Cipriano Barata — que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.

    A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos — cuja nascente é o regime das capitanias hereditárias. A lei universal dos conservadores brasileiros, traduzida pelo pronome “nós”, ainda trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. Pense nisso.

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